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Archive for novembro 2011

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HISTÓRIA DE DEUSES E HERÓIS OGUM: O que veio da áfrica



    HOMENAGEM AO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA - 20 DE NOVEMBRO

  Quando ele nasceu, os tempos já não eram tão bons para sua gente. Outrora fortes, unidos e independentes, os  yoruba  tinham conhecido a fartura, o poder, a glória, a riqueza material e a cultural; suas tribos chegaram a dominar toda a parte baixa do Rio Niger, até a costa do golfo da Guiné, na África Ocidental;  haviam levantado prósperas cidades - cuja origem estava no antigo reino de Benin, existente ali desde o século XII.
   Quando ele nasceu, porém, muita coisa havia mudado. Lutas internas minaram a união dos yoruba e permitiram que, aos poucos, outro povo viesse a dominá-los. Esse povo era o  fon , que vivia na costa mais a oeste, controlando inicialmente poucas extensões da costa marítima. Mas, melhor adestrados para a guerra, os fon, entre os quais até as mulheres faziam serviço militar obrigatório, derrotaram seus vizinhos, conquistaram-lhes as terras e fundaram um reino autocrático e poderoso. Para marcar sua supremacia, o palácio real dos fon foi erguido sobre as víceras do rei da tribo  - extirpada a ferro e fogo. "Sobre as vísceras de Dã",  no idioma dos fon, diz-se Dã-ho-mé.
   E assim, eternizando o nome do inimigo, passou a se chamar seu reino, que só foi colonizado pelos europeus no século XIX. O nome Daomé foi mantido e perdura até hoje.
   Quando ele nasceu, houve festa. E, conforme a tradição, os pais esperaram três dias até levar a criança ao sacerdote - o babalaô -, a fim de saber  a que divindade, a que orixá, devia ser o recém-nascido dedicado. Muitas horas passaram até que se cumprisse o complicado cerimonial e viesse a resposta. A resposta era uma esperança e uma ameaça: a criança seria protegida por Ogum, o deus da guerra.  Ogum seria seu nome. Um nome que soou como uma profecia de lutas futuras e - quem sabe? - talvez de novos grandes dias para o povo yoruba.

   Ogum cresceu aprendendo as habilidades seculares de sua tribo: seu pai lhe ensinara a trabalhar os metais, e suas peças de cobre eram elogiadas por todos. Jovem ainda, conseguira permissão para casar, o que um yoruba só podia fazer se antes provasse capacidade de produzir bens suficientes para trocá-los por alimentos e roupas. Vieram os filhos. Ogum precisava trabalhar bastante para mantê-los. Precisava ir com mais frequência ao posto de trocas, onde deixava seu produto e recebia o sustento das mãos dos dominadores fon. Numa dessas viagens, viu pela primeira vez  uma gente estranha de que se costumava falar na tribo, mas
que ninguém entendia. Era uma gente sem cor. Como podiam existir homens assim - pensava Ogum - se, como todos sabiam,  Odudua, o sopro divino,  tinha concebido o homem, e esse homem era preto. Mas os brancos ali estavam - com suas roupas pesadas, seus calçados de couro, suas armas de fogo. Eram portugueses,  fixando-se em núcleos  comerciais  ao longo da costa ocidental africana.
   Um dia, logo ao nascer do sol, Ogum repete a rotina de ir ao posto de trocas,  afastado da aldeia. Uma caminhada fatigante, porém indispensável. Só ao cair da tarde Ogum voltaria para ficar com os seus. Mas, quando volta, sua família não está à espera. Nem seus vizinhos. Nem seus amigos. Só alguns velhos, assustados e confusos, permanecem na aldeia. Por eles Ogum descobre o que se passara: soldados daomeanos e homens brancos invadiram a povoação, prenderam e levaram em cativeiro quase todos os habitantes. O que Ogum não ficara sabendo é que os próprios chefes yoruba tinham participado da operação: eles ajudavam a escravizar seus irmãos.
   Só havia uma coisa a fazer, Ogum não tinha dúvidas: ir ao encontro de sua família. Onde ela estivesse. Armou-se de um punhal, invocou a proteção de seu orixá e pôs-se em marcha. O orixá não veio em seu socorro: quando Ogum alcançou a fila de gente que ia devagar pelas trilhas da floresta, o  punhal foi inútil. Logo o bravo yoruba foi dominado - e de que adiantava resistir, se resistência seria a sua morte?  E, morto, como poderia proteger sua mulher e seus filhos?
   Assim, Ogum ficou na coluna dos cativos. Andaram dias e dias; os captores não queriam cansá-los demais, por isso não forçavam a marcha. O rumo era a costa, onde os portugueses tinham vários portos: Lagos, Porto Novo, São João de Ajudá.  Lagos é hoje a capital da Nigéria; Porto Novo, de Daomé. E São João de Ajudá constituiu - até 1964 - um enclave português nas terras dos países independentes da África, murcha reminiscência dos tempos  idos.
   Durante a caminhada, Ogum percebeu que a fuga era impossível. Para os que tentassem escapar, havia apenas um castigo: a forca (ainda hoje, um dos portos da Nigéria se chama Forcados, em memória dos negros que ali perderam a vida para não serem escravos).  Nada restava a fazer, senão andar. Finalmente, chegam a São João de Ajudá. É uma verdadeira fortaleza ao lado da cidade de Ouidah. Os presos são amontoados perto do cais, ali ficam dois dias, até que,  escoltado por guardas daomeanos aparece outro homem branco - o comerciante. Começa a escolha:  homens, mulheres e crianças são agrupados ou separados conforme os interesses do traficante. Os selecionados, Ogum entre eles, são embarcados num navio. Os mais agressivos são postos a ferros;  os demais, simplesmente atirados ao porão. Pouco depois, o veleiro partirá. Destino: a colonia portuguesa chamada Brasil. Onde Ogum irá trabalhar num engenho de açúcar,  sua mulher será escrava de alguma sinházinha, seus filhos - o que será de seus filhos?
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   Existiram milhares de Oguns. Trazidos ao Brasil, às ilhas do mar das Caraíbas, aos Estados Unidos, suas história individuais desapareceram no anonimato comum da condição de escravos,  nessa mesma condição em que ajudaram a construir as novas civilizações da América.  Com seu trabalho, principalmente, mas também com seus costumes, suas tradições, suas crenças, sua arte.  Seu rico passado cultural que o Ocidente ignorou ou desprezou durante tantos séculos,  sua organização social que o colonialismo  torceu ou destruiu o quanto pôde.  Mas que, ainda assim, sobrevivem e se revigoram na segunda metade do século XX, quando as nações africanas se fazem independentes. E passam a escrever, eles mesmos, sua própria história.
    Não só os yoruba foram vítimas do tráfico de escravos.  Os fon vendiam também seus irmãos  ewe ou gêge e ainda os fanti axanti, que habitavam o atual território do Togo, da Costa do Marfim, da atual Ghana, e que, entre nós eram  chamados minas
   Os fanti axanti tinham uma cultura muito parecida com a fon-gêge e a yoruba. No Brasil, não conseguiram deixar vestígios claros de suas tradições. Eram tidos como valentes e inteligentes, bons pescadores, conhecedores de cozinha e, no entanto, muito rebeldes à disciplina do trabalho. Além disso, foram ainda escravizados e trazidos para o nosso país os peuls, os mandingas, os haussa - habitantes da atual República do Mali e adjacências-, os tapas, rornu e gurunsi, da mesma origem (no Brasil, todos chamados geralmente de malês). Eram os mais desenvolvidos culturalmente. Muitos sabiam ler e escrever em caracteres arábicos - ao contrário dos donos, quase sempre analfabetos.
   Houve também os escravos da  origem bantu, os angolanos, os  congueses, de acentuada tendência artística. Foram os introdutores da capoeira e do samba. Os nomes umbanda e quimbanda, pelos quais se 
designam as seitas religiosas africanas, também se originaram de linguagens bantu.

    A civilização yoruba foi a mais importante do golfo da Guiné, na época da Idade Média européia. A origem do povo se perde em meio a lendas religiosas; essas contam que os yoruba vieram do nordeste africano - portanto das proximidades do Rio Nilo, primeiro no período que vai dos séculos VI ao X e, depois, no século XIII. O comandante da primeira emigração teria sido justamente Odudua - adorado como um deus. No delta do Rio Níger, os yoruba fundaram o reino de Ife e também o de Benin, onde dominaram a população local (edô).  Mas esses reinos  não formavam um império totalmente unificado. Ao contrário, subdividiram-se em outros, como o de Abeokuta, onde se esconderam muitos escravos fugidos das caravanas. Esse foi o último reino yoruba a cair, sob a pressão da colonização européia; ainda existia em 1914, quando afinal foi conquistado pelos inglêses. Benin ficou como um marco de civilização, na África Ocidental. São famosas suas obras de arte, em bronze, marfim e madeira.
    O deus sem rosto
Na série de deuses yoruba, Olorun está em primeiro lugar. Seu nome quer dizer "Senhor do Céu"  ou  "Mestre do Céu".  Não é figurado por nenhum objeto concreto de culto. Aliás, não se sabe mesmo se Olorun é uma realidade, no sentido do monoteísmo primitivo, ou uma criação dos missionários cristãos, na busca de uma palavra yoruba para a representação de Deus. De qualquer modo, Olorun não é motivo de culto especial na África e apenas algumas formas verbais dos negros brasileiros retém sua imagem.
   Olorun só poderia  comunicar-se  com os homens - de acordo com a idéia que os yoruba tinham do mundo - através de divindades secundárias, os orixás. Isso parece ser a reprodução, no plano religioso, do que se passava na vida civil daquelo povo, na qual o rei se comunicava com seus súditos através de intermediários.
   O maior oráculo da Nigéria - terra dos yoruba, é Ifá.  Não se trata propriamente de um orixá, mas é consultado em todas as ocasiões importantes;  ele diz qual o orixá a quem o recém-nascido deve ser consagrado; prediz o tempo, as calamidades, as doenças; indica os deuses que foram ofendidos e a quem se deve oferecer sacrifícios. Os sacerdotes de Ifá são justamente os babalaôs.

   Diz a lenda que, dos dois grandes orixás Obatalá e Odudua, nasceram Aganju e Yemanjá.  Obatalá, o céu, que também se chama Orixalá, é o protetor das aldeias e dos templos e se representa, nas pinturas, como um cavaleiro armado de lança. Quanto a Odudua, a terra, tem funções de fecundação e reprodução. Nesses mitos, Odudua é tida como mulher de Obatalá - sendo o casal a união entre o céu e a terra.  De Aganju e Yemanjá, vem Orungan; este desrespeita sua mãe, que morrendo, faz nascer quinze orixás - representantes de quinze dinastias dos reinos yoruba, tais como:  Dada, deus dos vegetais;  Xangô, deus do trovão;  Ogum, deus da guerra e do fogo;  Olokum, deus do mar;  Obá, deusa do rio Obá;  Orishako, deus da cultura;  Oxossi, deus da caça;  Ajê Lalunga, deus da riqueza. 
   O orixá protetor de alguém deve ser cultuado por toda a vida. Os rituais consistem  em oferendas do sacrifício de animais (aves, cabras, carneiros), música acompanhada por instrumentos de percussão (atabaques, agogôs, etc.) e danças. As roupagens são características, distinguindo-se os orixás pelas cores. Máscaras, esculturas de bronze, ferro, terracota e madeira expressam os deuses. Mas, apesar das oferendas e sacrifícios, os orixás não conseguiram proteger os yorubas. 

   Os fon eram os intermediários no comércio de escravos, vendendo os yoruba aos negreiros;  vendiam, do mesmo modo, os ewe ou gêge, que pertenciam ao mesmo grupo étnico deles, falando quase a mesma língua. Isto não quer dizer, porém, que todos os fon estivessem fora do perigo da escravidão. Muitos deles vieram também para o Brasil como escravos, vendidos pelos seus próprios chefes. E em tão grande número que a cultura negra sobrevivente, em nosso país, se chama gêge-nagô, incluindo-se os fon entre a designação geral gêge. Mas muitos voltaram, principalmente depos de libertados. E até hoje, no Daomé e no Togo, há regiões inteiras onde se fala português e a população tem orgulho da ascendência brasileira.